Ponte aérea – Parte #1

Competição é a mãe da Invenção

Corria o ano de 1959. O Brasil de Juscelino, da Bossa Nova, do Tergal e da calça Rancheiro experimentava ares de renovação cultural, esportiva, social. O futuro chegaria em cinco anos ao invés de cinquenta, prometia o presidente. O Brasil acreditava: ao gigante adormecido esse róseo porvir haveria de chegar.

São Paulo já era a maior cidade do Brasil, e sua importância crescia junto com sua industrialização. O Rio era a Capital Federal e centro político/cultural do país. Os 377 km que separavam as duas metrópoles já haviam se convertido no eixo ao redor do qual o país se movia. E para vencer essa distância, ou você dirigia um dos Fusquinhas, Romi-Isettas e Rural Willys que nossa incipiente indústria automobilística começava a produzir ou ia de trem. Mas se tivesse mesmo pressa, como todo o Brasil tinha, você ia de avião.

No setor de aviação comercial, ao final dos anos 50, os céus eram da Panair nos vôos internacionais e da Real Aerovias nas linhas domésticas. Varig, Cruzeiro, Vasp eram as outras empresas aéreas importantes, além do terceiro escalão formado pela Paraense, Sadia1, Lóide, Nacional, etc, etc…

Notável foi o crescimento da Real Aerovias: já naquele ano de 1959, ostentava a maior frota de DC-3 do mundo. Seu dinâmico e atrevido presidente, Comandante Linneu Gomes, com muito trabalho duro e visão empresarial, criou um gigante em menos de dez anos. Ousada, agressiva até, a Real fazia de tudo para conquistar novos mercados e expandir sua base de passageiros. Fazia o que podia e também o que não devia. Como subornar os carregadores de malas nos aeroportos para que estes levassem os passageiros das calçadas direto para os guichês e balcões da empresa.

Essa prática ocorria abertamente em todo o Brasil. Em princípio de 1959, três gerentes do aeroporto, (tradicionalmente os melhores “termômetros” de que dispõem as companhias aéreas) começaram a se preocupar com as táticas agressivas da Real e de suas conseqüências para sua empregadoras, Varig, Cruzeiro e Vasp no aeroporto de Congonhas, onde os três trabalhavam.

Esses três mosqueteiros eram Carlos Ivan Siqueira (Varig), Juarez Xavier de Azevedo (Cruzeiro do Sul) e Antônio Deléo (Vasp). Irritados com as práticas e táticas da Real, um dia se puseram a conversar. Somente quem trabalhou em aeroportos sabe que, a despeito da competição acirrada, no fim do dia é comum mesmo entre concorrentes uma troca salutar de informações, dúvidas, críticas. E até fofocas.

Debruçados provavelmente sobre um chopps e dois pastel no restaurante do aeroporto, gravatas afrouxadas, conversavam sobre as práticas heterodoxas da Real. Porquê suas empresas não reagiam? Afinal, combinadas, as três tinham mais freqüências que a Real de Linneu Gomes. Bolas, porque não faziam algo em conjunto?

Decola uma revolução

Entre um bolinho de bacalhau e outro, se puseram a pensar. Muitas vezes, os vôos das três empresas decolavam simultaneamente (e vazios) de São Paulo para o Rio de Janeiro, a principal rota aérea de nossa aviação. Em seguida, às vezes, passavam-se até duas, três horas para saírem outros vôos rumo ao Rio. Não faria mais sentido coordenar as decolagens evitando a sobreposição? De fato, era uma idéia. Melhor ainda seria permitir aos passageiros trocar de companhia e embarcar no primeiro vôo disponível, sem necessidade de fazer reserva, seja qual fosse a empresa. Interessante.

A chave do sucesso

Siqueira, Azevedo e Deléo resolveram alí mesmo que esta saída seria perfeita: ao público, que teria total flexibilidade para embarcar no primeiro lugar disponível, esperando o mínimo de tempo no solo e para as empresas, que voariam com menos lugares vazios. Valeria um tentativa. Assim, e sem autorização prévia das respectivas diretorias, os três gerentes de aeroporto começaram a agir.

Retardando alguns vôos, fusionando outros, ajeitando um pouquinho aqui e acolá, foram na prática moldando as respectivas operações de maneira a escalonar racionalmente os vôos. Passaram também a receber, sem necessidade de endosso, bilhetes das outras empresas participantes. Talvez isso só fosse possível numa época em que competir não era sinônimo de estrangular seu concorrente.

Mas havia obstáculos, claro. Por exemplo, como não havia ainda a Câmara de Compensação, que coordena o repasse das receitas das empresas aéreas, as três gerências se encarregaram de trocar entre sí, ao fim do dia, os bilhetes voados e “ajeitar” os números de receita em caixa de acordo com o número de passageiros transportados, “casando” informalmente ocupação com faturamento. Ousadia demais? Não. Uma idéia brilhante.

Da noite para o dia, aviões começaram a sair lotados. Passageiros que antes esperavam até três, quatro horas, passaram a embarcar em minutos. A idéia dos três foi “descoberta por acaso” por um passageiro especial. Informado que trocaria de aeronave e chegaria mais cedo ao seu destino, esse viajante surpreendeu-se positivamente. Ouviu atentamente as explicações do pessoal de terra e aprovou de imediato o conceito. Seu nome? Ruben Berta.

Agora é oficial

Dias depois da experiência, Berta reuniu-se nos escritórios da Cruzeiro do Sul, no Rio de Janeiro, com os presidentes da própria Cruzeiro do Sul e da Vasp, os senhores José Roberto Ribeiro Dantas e Brig. Oswaldo Pamplona. Berta expôs o plano, que foi entusiasticamente recebido por seus colegas. Secundados por assessores, elaboraram a toque de caixa um plano de ação.2 O plano foi apresentado ao DAC, com o pedido expresso de sigilo total. Dias depois, foi literalmente aprovado.

Nas semanas seguintes, Siqueira, Azevedo e Deléo, ajudados por seus comandados, deram os toques finais aos preparativos comerciais e operacionais. Na madrugada de 5 de julho de 1959, construíram, literalmente da noite para o dia, um balcão no saguão de Congonhas e outro no Santos Dumont.

Com o dia raiando, colocaram letreiros sobre esses balcões recém construídos. Neles estavam em letras modernosas, a logomarca que iria definir os contornos, e porquê não dizer, a sorte das empresas aéreas brasileiras nas próximas décadas. Nascia aí para o público viajante a Ponte Aérea.

O nome foi sugerido pelo próprio Berta, que inspirou-se no termo Air Bridge, cunhado pelos norte-americanos durante a operação aérea que sustentou a vida na Berlim Ocidental cercada pelos soviéticos, logo após a Segunda Guerra.

Foi assim que no dia 6 de julho nasceu a Ponte Aérea. As três empresas começaram a ligar as duas principais cidades do Brasil com vôos escalonados alternadamente a cada 60 minutos. Os equipamentos iniciais utilizados: Varig com Convair 240, Vasp com o Scandia e a Cruzeiro com Convair 340.

Suportando a novidade numa época que tudo era novo, uma campanha publicitária foi lançada, em jornais, revistas e até com filmes na TV. Por sinal, hilariantes nos dias de hoje, tendo como protagonistas, ou melhor, “Garotos-Propaganda”, um casal formado por jovem e franzino ator, o desconhecido Walmor Chagas, que contracenava com uma moçoila de nome Eva Wilma.

Ação e reação

Pego de calças curtas, Linneu Gomes não perdeu a pose. Semanas depois, lançou a “Super Ponte Real” com serviços a cada hora. Linneu afirmou na ocasião, fiel ao seu estilo bateu-levou que “Se a Ponte Aérea colocar vôos de meia em meia hora, a Real vai colocar vôos a cada 15 minutos”. Bravatas a parte, deu no que deu – a Super Ponte Real durou apenas alguns meses, enquanto a Ponte Aérea seguiria por décadas a fio.

(Texto de Gianfranco Beting)

(Fonte: Jetsite)

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  1. Eu pergunto: alguma relação dessa empresa com a indústria alimentícia Sadia? []
  2. Se fosse hoje, seria pomposamente chamado de um Business Plan… []