(texto de Jorge Buescu, publicado na revista portuguesa Ingenium de out/99. Jorge Buescu é professor de Matemática no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, e é entusiasta da divulgação científica.)
Este ano participaremos de eleições. Livres e universais, elas são a quinta-essência da democracia, e o princípio de “um homem-um voto” é a expressão máxima da igualdade entre os homens. Nada pode haver de mais justo que os resultados das eleições. Certo? Errado.
O princípio aceito hoje universalmente, de “um homem-um voto”, conhecido por “votação plural”, não é o processo mais justo de proceder a uma eleição. Pelo contrário. Pode levar a gritantes injustiças, elegendo o candidato menos apoiado pelo eleitorado!
Estas afirmações nada têm de ideológico. São conseqüências de teoremas demonstrados por matemáticos e publicados na literatura científica. O leitor pode, de resto, substituir as eleições legislativas pelas do seu clube de futebol favorito, do administrador do condomínio, ou do Papa. As afirmações não se alteram.
Nada melhor para esclarecer estas afirmações surpreendentes do que um exemplo. Suponhamos que para um determinado cargo existem três candidatos: o Alberto, o Bernardo e a Catarina (daqui por diante designados respectivamente por A, B e C), e que o universo eleitoral é constituído por 12 pessoas. Cada eleitor tem a sua hierarquia de preferências entre A, B e C. Se um eleitor prefere A a B e, por outro lado, B a C, vamos designar as suas preferências eleitorais por A>B>C.
Suponhamos então que as ordens de preferência eleitoral dos votantes são as seguintes: para 5 dos eleitores, A>C>B; para 4 dos eleitores, B>C>A; e para os restantes 3, C>B>A.
De acordo com a regra de “um homem–um voto”, cada eleitor vota na sua primeira preferência. Resultado – o Alberto é eleito com uns confortáveis 42%. E com toda a justiça, pensamos.
Injustiças da Democracia
No entanto, o que aconteceria se o Bernardo tivesse retirado a sua candidatura? O nosso sentido de justiça leva-nos imediatamente a pensar que deve continuar a ser o Alberto o vencedor. Errado! Uma simples contagem mostra que, retirando-se o Bernardo, a Catarina ganha ao Alberto por 7 a 5 – porque o Alberto é a primeira escolha para 5 votantes mas a última para 7. É eleita a Catarina!
Mais. Nas outras eleições entre apenas dois candidatos, a Catarina vence o Bernardo por 8 a 4 e o Bernardo vence o Alberto por 7 a 5.
Estes resultados sugerem fortemente que os eleitores no seu conjunto encaram a Catarina como o melhor candidato, visto que ganha a todos os outros isoladamente, e o Alberto como o pior, visto que perde em comparação com qualquer dos outros.
Ironia do destino … é eleito o Alberto e a Catarina fica em último lugar. O resultado da escolha coletiva foi o menos desejado pela maioria dos próprios eleitores.
Este paradoxo eleitoral tem um único culpado: o processo de contagem dos votos. Ele mostra que a “votação plural” pode, ao contrário do que é intuitivo, não refletir fielmente as opções do eleitorado.
Estas observações não são novas. Pelo contrário. Têm mais de 200 anos. Tudo começou quando, em 1780, o matemático francês Jean-Charles Borda, cansado do que considerava serem más decisões eleitorais da Academia das Ciências, apresenta uma memória sobre contagem de votos em eleições. Borda descreveu os defeitos do sistema “Um homem – um voto” (um dos exemplos que forneceu foi o atrás descrito) e propôs um novo sistema, que demonstrou matematicamente ser mais justo. A Academia adotou-o até cerca de 1800, altura em que foi proibido por Napoleão (cuja fama não provém do seu amor à democracia).
O método proposto, conhecido hoje como “contagem de Borda”, é simples. Em lugar de “um homem – um voto”, cada votante deve ordenar os candidatos por ordem de preferência. Se há três candidatos, a primeira escolha do votante recebe 2 pontos, a segunda 1 ponto e a terceira 0 pontos. No final, somam-se os pontos obtidos por cada um dos candidatos. Ganha quem tiver mais pontos.
É mais ou menos clara a superioridade deste método sobre a votação plural. Na contagem de Borda o voto retém a informação sobre todas as opções do eleitor. Na votação plural é apenas considerada a primeira preferência do eleitor; as suas outras opções são ignoradas.
As alternativas possíveis
É assim natural esperar que a contagem de Borda retrate com maior fidelidade e precisão as preferências do eleitorado. Para retomar o exemplo acima, realizemos a eleição entre A, B e C utilizando a contagem de Borda. O resultado é de 15 pontos para a Catarina, 11 para o Bernardo e 10 para o Alberto. Fez-se justiça! A Catarina é eleita e o Alberto fica em último.
Esta questão, no entanto, é mais profunda do que parece. O matemático americano Kenneth Arrow desconhecia a ilustre linhagem deste problema quando, no final dos anos 40, publicou como parte da sua Tese de Doutoramento, um resultado surpreendente, talvez o mais citado (e mal interpretado) resultado matemático relativo às Ciências Sociais.
Arrow considerou, no abstrato, todas as possíveis formas de eleição que satisfaçam 3 propriedades, com as quais dificilmente se discorda. A primeira é a Liberdade. Cada eleitor pode ordenar livremente os candidatos (desde que o faça transitivamente: se prefere A a B e B a C, então tem de preferir A a C). A segunda é a da Unanimidade. Se todos os eleitores preferem A a B, então A vence B nas eleições.
A terceira condição é a Independência de Alternativas Irrelevantes. O resultado da hierarquização coletiva de dois candidatos depende apenas dos candidatos em questão. Isto é, se o resultado coletivo é A>B>C, então o grupo deve preferir A a C independentemente de B ser ou não candidato.
Esta condição elimina portanto a possibilidade de haver paradoxos eleitorais à la Borda, como o exemplo acima construído. Assim, por exemplo, o sistema de voto plural não a verifica.
Para assegurarmos uma eleição justa e livre de paradoxos, basta pois encontrar um sistema que verifique estas condições e substituir o sistema de voto plural por ele.
No entanto, o resultado chocante demonstrado por Arrow é o seguinte: com 3 ou mais candidatos, o único sistema eleitoral (com resultados transitivos) que satisfaz estas condições é aquele em que existe um eleitor fixo tal que o resultado da eleição coincide sempre com as suas preferências. Em português corrente, em que existe um “ditador”.
O Teorema de Arrow, que lhe valeu o Nobel da economia de 1972, afirma que o único sistema eleitoral livre de paradoxos é … uma ditadura! Significa isto que a democracia é uma ilusão? Que uma sociedade civilizada é forçada a escolher entre incoerências e ditaduras?
Felizmente, não. Uma série de resultados demonstrados já nesta década pelo matemático Donald Saari, da Northwest University, mostram qual é o problema com o Teorema de Arrow. As suas hipóteses permitem que os eleitores sejam irracionais, isto é, que possam fazer escolhas não-transitivas. E daí os paradoxos.
Ora, adotando uma hipótese semelhante à de Arrow mas que exclua à partida esta possibilidade, o resultado demonstrado por Saari é novamente surpreendente: o único processo democrático que assegura uma eleição justa e sem paradoxos é a velha contagem de Borda! Está salva a democracia.
Saari descreve os seus resultados, que demonstram a grande superioridade teórica da contagem de Borda sobre qualquer outro sistema, no seu livro “Basic Geometry of Voting”, publicado em 1995.
No entanto, falta aos matemáticos o maior dos trabalhos, porventura desesperado: convencer os políticos de que, para haver justiça nas urnas, têm de substituir o sistema “um homem – um voto” pela contagem de Borda.
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